Hello
People!
Em primeiro lugar desculpem - me pela a ausência, estava refletindo sobre a
vida e acabei me desligando do mundo real.
E em segundo tentarei, estar mais presentes com vocês!
Agora ao livro do:
Mia Couto
(Moçambique)
Terra sonâmbula
Editorial Caminho
Se
dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a
terra se movia espaços e tempos afora.
Quando
despertavam, os habitantes olhavam o novo rosto da paisagem e sabiam que,
naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia do sonho.
(Crença
dos habitantes de Matimati)
O
que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada
permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes
do futuro.
(Fala
de Tuahir)
Há
três espécies de homens:
os
vivos, os mortos e os que andam no mar.
(Platão)
Primeiro capítulo
A ESTRADA MORTA
Naquele
lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se
arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de
tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão
sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas
pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao
chão, em resignada aprendizagem da morte.
A
estrada que agora se abre a nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma. Está
mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda a distância. Pelas bermas
apodrecem carros incendiados, restos de pilhagens. Na savana em volta, apenas
os embondeiros contemplam o mundo a desflorir.
Um
velho e um miúdo vão seguindo pela estrada. Andam bambolentos como se caminhar
fosse seu único serviço desde que nasceram. Vão para lá de nenhuma parte, dando
o vindo por não ido, à espera do adiante. Fogem da guerra, dessa guerra que
contaminara toda a sua terra. Vão na ilusão de, mais além, haver um refúgio
tranquilo. Avançam descalços, suas vestes têm a mesma cor do caminho. O velho
se chama Tuahir. É magro, parece terperdido toda a substância. O jovem se chama
Muidinga. Caminha à frentedesde que saíra do campo de refugiados. Se nota nele
um leve coxear, umaperna demorando mais que o passo. Vestígio da doença que,
ainda há pouco, o arrastara quase até à morte. Quem o recolhera fora o velho
Tuahir, quando todos outros o haviam abandonado. O menino estava já sem estado,
os ranhos lhe saíam não do nariz mas de toda a cabeça. O velho teve que lhe
ensinar todos os inícios: andar, falar, pensar. Muidinga se meninou outra vez.
Esta segunda infância, porém, fora apressada pelos ditados da sobrevivência.
Quando
iniciaram a viagem já ele se acostumava de cantar, dando vaga a distraídas
brincriações. No convívio com a solidão, porém, o canto acabou por migrar de
si. Os dois caminheiros condiziam com a estrada, murchos e desesperançados.
Muidinga
e Tuahir param agora frente a um autocarro queimado. Discutem, discordando-se.
O jovem lança o saco no chão, acordando poeira. O velho ralha:
-
Estou-lhe a dizer, miúdo: vamos instalar casa aqui mesmo.
-
Mas aqui? Num machimbombo (autocarro) todo incendiado?
-
Você não sabe nada, miúdo. O que já está queimado não volta a arder.
Muidinga
não ganha convencimento. Olha a planície, tudo parece desmaiado. Naquele
território, tão despido de brilho, ter razão é algo que já não dá vontade. Por
isso ele não insiste. Roda à volta do machimbombo. O veículo se despistara,
ficara meio atravessado na rodovia. A dianteira estava amassada de encontro a
um imenso embondeiro. Muidinga se encosta ao tronco da árvore e pergunta:
-
Mas na estrada não é mais perigoso, Tuahir? Não é melhor esconder no
mato?
-
Nada. Aqui podemos ver os passantes. Está-me compreender?
-
Você sempre sabe, Tuahir.
-
Não vale a pena queixar. Culpa é sua: não é você que quer procurar seus pais?
-
Quero. Mas na estrada quem passa são os bandos (Bandos: designação popular
de bandidos armados).
-
Os bandos se vierem, nós fingimos que estamos mortos. Faz conta falecemos junto
com o machimbombo.
Entram
no autocarro. O corredor e os bancos estão ainda cobertos de corpos
carbonizados. Muidinga se recusa a entrar. O velho avança pelo corredor, vai
espreitando os cantos da viatura.
-
Estes arderam bem. Veja como todos ficaram pequenitos. Parece o fogo gosta de
nos ver crianças.
Tuahir
se instala no banco traseiro, onde o fogo não chegara. O miúdo continua
receoso, hesitando entrar. O velho encoraja:
-
Venha, são mortos limpos pelas chamas.
Muidinga
vai avançando, pisando com mil cautelas. Aquele recinto está contaminado pela
morte. Seriam precisas mil cerimónias para purificar o autocarro.
-
Não faça essa cara, miúdo. Os falecidos se ofendem se lhes mostramos nojo.
Muidinga
arruma o saco num banco. Senta-se e observa o recanto conservado.
Há tecto, assentos, encostos. O velho,
impávido, já se deitou a repousar. De olhos fechados, espreguiça a voz:
-
Sabe bem uma sombrinha assim. Não descanso desde que fugimos do
campo.
Você não quer sombrear?
-
Tuahir, vamos tirar esses corpos daqui.
-
E porquê? Cheiram-lhe mal?
O miúdo não responde logo. Está virado para a janela quebrada. O velho insiste que descanse. Desde que saíram do campo de deslocados eles não tinham tido pausa. Muidinga permanece de costas viradas. Se escuta apenas o seu respirar, quase resvalando em soluço. Então, ele repete a sussurrante súplica: que se limpe aquele refúgio.
- Lhe peço, tio Tuahir. É que estou farto
de viver entre mortos. O velho se apressa a emendar: não sou seu tio! E ameaça: o
moço que não abuse familiaridades. Mas aquele tratamento é só a maneira da
tradição, argumenta Muidinga.
-
Em você não gosto.
-
Não lhe chamo nunca mais.
-
E me diga: você quer encontrar seus pais porquê?
-
Já expliquei tantas vezes.
- Desconsigo de entender. Vou-lhe contar
uma coisa: seus pais não lhe vão querer ver nem vivo.
-
Porquê?
-
Em tempos de guerra filhos são um peso que trapalha maningue
(Maningue:
muito, demasiado).
Saem a enterrar os cadáveres. Não vão
longe. Abrem uma única campa para poupar esforço. No caminho do regresso
encontram mais um corpo. Jazia junto à berma, virado de costas. Não estava
queimado. Tinha sido morto a tiro. A camisa estava empapada em sangue, nem
se notava a original cor. Junto dele estava uma mala, fechada, intacta.
Tuahir sacode o morto com o pé. Revista-lhe os bolsos, em vão: alguém já
os tinha vazado.
-
Eh pá, este gajo não cheira. Atacaram o machimbombo há pouco
tempo.
O miúdo estremece. A tragédia,
afinal, é mais recente que ele pensava. Os espíritos dos falecidos ainda por ali
pairavam. Mas Tuahir parece alheio à vizinhança. Enterram o último
cadáver. O rosto dele nunca chega a ser visto: arrastaram-no assim mesmo,
os dentes charruando a terra.
Depois
de fecharem o buraco, o velho puxa a mala para dentro do autocarro. Tuahir
tenta abrir o achado, não é capaz.
Convoca
a ajuda de Muidinga:
-
Abre, vamos ver o que está dentro.
Forçam o fecho, apressados. No interior da mala estão roupas, uma caixa com comidas. Por cima de tudo estão espalhados cadernos escolares, gatafunhados com letras incertas. O velho carrega a caixa com mantimentos. Muidinga inspecciona os papéis.
-
Veja, Tuahir. São cartas.
-
Quero saber é das comidas.
O miúdo remexe no resto. As mãos curiosas
viajam pelos cantos da mala. O velho chama a atenção: ele que deixasse tudo
como estava, fechasse a tampa.
-
Tira só essa papelada. Serve para acendermos a fogueira.
O
jovem retira os caderninhos, guarda-os por baixo do seu banco. Não parece
pretender sacrificar aqueles papéis para iniciar o fogo. Fica sentado, alheio.
No enquanto, lá fora, tudo vai ficando noite. Reina um negro silvestre, cego.
Muidinga
olha o escuro e estremece. É um desses negros que nem os corvos comem.
Parece todas as sombras desceram à terra. O medo passeia seus chifres no
peito do menino que se deita, enroscado como um congolote (Congolote:
bicho de mil patas, maria-café). O machimbombo se rende à quietude, tudo é
silêncio taciturno.
Mais tarde, se começa a escutar um pranto,
num fio quase inaudível. É Muidinga que chora. O velho se levanta e zanga:
-
Pára de chorar!
-
É que me dói uma tristeza...
- Chorando assim você vai chamar os
espíritos. Ou se cala ou lhe rebentoa tristeza à porrada.
-
Nós nunca mais vamos sair daqui.
- Vamos, com a certeza. Qualquer coisa vai
acontecer qualquer dia. E essa guerra vai acabar. A estrada já vai-se encher de gente,
camiões. Como no tempo de antigamente.
Mais
sereno, o velho passa um braço sobre os ombros trementes do rapaz e lhe
pergunta:
-
Tens medo da noite?
Muidinga
acena afirmativamente.
-
Então vai acender uma fogueira lá fora.
O miúdo se levanta e escolhe entre os
papéis, receando rasgar uma folha escrita. Acaba por arrancar a capa de um dos
cadernos. Para fazer fogo usa esse papel. Depois se senta ao lado da
fogueira, ajeita os cadernos e começa a ler. Balbucia letra a letra,
percorrendo o lento desenho de cada uma. Sorri com a satisfação de uma
conquista. Vai-se habituando, ganhando despacho.
-
Que estás a jazer, rapaz?
-
Estou a ler.
-
É verdade, já esquecia. Você era capaz ler. Então leia em voz alta que é
para
me dormecer.
O
miúdo lê em voz alta. Seus olhos se abrem mais que a voz que, lenta e cuidadosa,
vai decifrando as letras. Ler era coisa que ele apenas agora se recordava
saber. O velho Tuhair, ignorante das letras, não lhe despertara a faculdade
da leitura.
A lua parece ter sido chamada pela voz de Muidinga. A noite toda se vai enluarando. Pratinhada, a estrada escuta a estória que desponta dos cadernos: Quero pôr os tempos...
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